O PAÍS DO CARNAVAL: BANDIDOS NA TV
Dizem que em nosso país tudo
começa após o Carnaval... Este último, em especial, serviu como uma luva para
praticar introspecção. Devo admitir que de uns tempos para cá, tal festividade
tem se esforçado para ser engajada, trazendo para avenida críticas sobre os
mais diversos assuntos, mas por alguma razão, nunca nenhuma Escola de Samba
trouxe à pauta “Meios que os traficantes em geral utilizam para lavar
dinheiro”. Para quem não sabe, o Carnaval é um deles.
Devo ser um péssimo exemplo de
brasileiro: detesto samba e tudo que advém do mesmo. Provavelmente pelo fato de
saber que a cada Carnaval surgem “hits” musicais ridículos – também bancados
pelo tráfico – que nos transformam em acumuladores compulsivos de um mundaréu
de lixo cultural que a mídia em geral sempre insiste em nos empurrar goela
abaixo diariamente, servindo de cortina de fumaça para questões que realmente
deveriam importar.
Nesta perspectiva, acredito que a
Zombie Walk retrata bem o Carnaval através de sua manada de zumbis. De
positivo, nesta época só o exame de gravidez, o exame de H.I.V. e o feriado...
Ah, o feriado...
Aproveitei para hibernar. Dormi
praticamente os cinco dias de Carnaval – se contar com o final de semana. E foi
em meio a este período de hibernação que assisti a série documental brasileira
“Bandidos na Tv”. A série foi lançada em 31 de maio de 2019, alguns dias antes
do documentário aclamadíssimo “Democracia em Vertigem”.
Adorei a série. Acredito que esta
foi injustiçada, pois deveria ter concorrido ao Oscar face a face com
“Democracia em Vertigem”. Talvez isso não tenha ocorrido pelo fato de “Bandidos
na Tv” abordar um assunto muito polêmico ocorrido na região norte do nosso país
– há um torcer de nariz endêmico arraigado em nossa cultura.
Toda a narrativa se desenvolve ao
redor do apresentador de televisão Wallace Souza que, posteriormente, viria a
se tornar deputado estadual do Amazonas. Ele ao lado de seus irmãos comandava o
programa “Canal Livre” na Tv Rio Negro, hoje Tv Bandeirantes Amazonas.
O programa em questão apresentava
casos policiais, mostrando assassinatos, sequestros e operações de repreensão
ao tráfico. Pelo protagonismo de chegar antes que qualquer outra emissora ao
local dos crimes – numa das situações expostas, chegaram a tempo de filmar um
cadáver pegando fogo – e, principalmente, por “ajudar” os mais necessitados
através de seus patrocinadores, o programa caiu nas graças do público e
alcançou picos de audiência jamais vistos antes. Era questão de tempo para
Wallace se eleger deputado e isso veio em 1998, através de uma esmagadora
maioria de votos.
Durante o período em que atuou
como deputado estadual, Souza ampliou o seu “fã-clube”, pois demonstrava
continuar com o mesmo espírito de justiça do seu antigo programa, ao mesmo
tempo em que conquistou muitos inimigos políticos, com especial destaque para o
prefeito de Coari em 2001, Adail Pinheiro, e Eduardo Braga (na época governador
do Amazonas, atualmente senador).
No início do primeiro mandato,
mais precisamente em fevereiro de 2001, Wallace Souza denunciou, em um discurso
na Assembleia Legislativa do Estado, a chamada “indústria do sexo” que ocorria
em Manaus. A denúncia de uma rede de prostituição e exploração sexual infantil
apontava para pessoas importantes da cidade, incluindo empresários, além de
criticar a omissão por parte das autoridades policiais, do Poder Judiciário e
do Ministério Público. Na mesma época, o deputado pediu a criação de uma “CPI
da PM” para averiguar a ligação de policiais de alta patente com a
prostituição.
Após o prefeito de Coari e
parceiro político de Eduardo Braga, Adail Pinheiro, ser incriminado, Souza
solicitou em 2008 uma outra CPI, desta vez para investigar a exploração sexual
de crianças e adolescentes em Coari.
Nenhuma das CPIs foi aceita. Não
demorou muito para que montassem uma “força-tarefa”, muito parecida ao estilo
inquisitório da Lava-Jato para procurar desestabilizar o deputado. No mesmo ano
(2008), a força-tarefa conseguiu um “depoimento” do ex-policial militar Moacir
Jorge Pereira da Costa, conhecido como "Moa". Tal denúncia apontava
Wallace Souza e seu filho, Raphael Souza, como supostos comandantes de uma
quadrilha de esquadrão da morte e crime organizado no Amazonas. Em outras
palavras, isso justificaria o porquê de sua equipe de reportagem chegar antes
que qualquer outra aos locais dos crimes.
Será que vale tudo pela
audiência, inclusive matar? Será que Wallace Souza é criminoso? Ou será que é
vítima de um complô arquitetado pelos seus adversários políticos? A partir
deste ponto, uma sucessão de fatos começa a nos enredar de tal forma que
ficamos confusos. Ora acreditamos piamente que Wallace é culpado, ora que é
inocente.
Paro por aqui. Seria um crime não
permitir que outras pessoas provem da realidade surreal desta trama. O que vale
a partir daqui é a questão de como o sensacionalismo pode ser nocivo. Wallace
Souza de apresentador sensacionalista passa a ser alvo político através das
ondas do sensacionalismo, sejam notícias fakes ou não.
O ápice da trama se dá quando a
força-tarefa dá o seu jeito de levar tais denúncias contra o deputado ao
programa Fantástico em 2009. Basta algo cair na mídia para ser verdade. Basta
ser acusado de algo para ser culpado. O programa na época aproveitou como pôde
para alavancar sua audiência.
O mesmo Fantástico que, por estes
dias, trouxe o doutor Dráuzio Varella abraçando a detenta transexual Suzy de
Oliveira que, por sua vez, está presa por ter estuprado e estrangulado um
garoto de nove anos.
Suzy foi abraçada pelo doutor
devido a sua suposta tristeza de não receber visitas há oito anos. Varella não
fez distinção, pois o seu código de conduta médica não o permitiria. Ele disse
que não sabia dos crimes de Suzy (provavelmente pensou que estava presa por
roubo) e eu acredito. O que não acredito é que a produção do programa não sabia
– conforme tentaram justificar no Jornal Nacional. Ah, a Globo... Sempre lisa,
sempre tentando “tirar o corpo fora”.
De fato é lamentável o que a mãe
deste garoto assassinado deve ter passado e deve estar passando. Ninguém nunca
está preparado (a) o suficiente para perder um filho, ainda mais assim, de modo
tão brutal – mais ou menos o que aconteceu com Andréa, mãe de Marcela, ao ser
avisada ao vivo pelo apresentador Luiz Bacci sobre o assassinato de sua filha.
Porém, isso não justifica, por
exemplo, alguns “cidadãos de bem” da direita brasileira utilizarem redes
sociais para tentarem dar uma surra moral no doutor e muito menos querer
criminalizar arbitrariamente a todos lgbts e transgêneros por causa de Suzy.
Nem todo bandido é transexual ou aparece na tv. Aliás, existe muito padre
pedófilo e muito evangélico picareta, mas isso não significa que todos sejam.
Tal qual Brás Cubas (da obra
Memórias Póstumas de Brás Cubas, do ilustre Machado de Assis) acredito cada vez
mais que o Brasil é de assombrar e assombrar-se... Aqui vale tudo pela
audiência. Aqui pode tudo. Aqui o Largo da Ordem vira Largo da Desordem. Aqui
Temer pode ser considerado poeta e Sarney imortal. Brasil é o país do absurdo –
transcende ao Carnaval...
(Igor Veiga / PERIGOR)
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